O tom sépia da saudade

Domingos à tarde – bem naquele momento em que não é dia, nem noite – é quando a ausência sem remédio lateja no meu peito. Ausência é diferente de falta. Não, não…definitivamente não são sinônimos.

É minha hora preferida, era a dele também. Céu de baunilha como costumava me dizer enquanto olhávamos para o céu com tons alaranjados, roseados. Havia um fascínio maior de minha parte nesse momento tão fugaz do fim do dia, e começo de noite: o tom sépia que envolve tudo…todos nesse breve instante de beleza natural. Essa tonalidade até os dias presentes me fascina neste momento. Tem magia nesses fugazes dez ou quinze minutos do dia. Ainda tenho o olhar de menino pra esse momento que, segundo me disseram, chama-se lusco-fusco.  

Sentado na frente de casa, cafezinho no copo americano, pois uma xícara destoaria do tom nostálgico do momento. Ouvíamos músicas de “dor de cotovelo”. ‘Coisa boa é curtir uma música de desilusão amorosa sem estar apaixonado; a gente sofre só por dois ou três minutos juntos com o cantor’. Ele sempre comentava.  Então vinham suas histórias da infância, as situações engraçadas que meu avô vivenciara, as risadas, os minutos de tristeza por lembranças desagradáveis… o choro nostálgico da infância feliz que ele teve.

O choro de saudade pungente dele assustava-me, não só por eu compartilhar daquela dor e de cujo pranto eu estava consciente da minha incapacidade de amenizar, mas também porque eu tinha a certeza palpável de que um dia seria eu quem choraria pelas lembranças que me tornariam o homem que seria num futuro que, na minha cabeça de menino de dez, onze anos, parecia assustadoramente distante. 

A mão quente e áspera tocando minha testa e meu nariz na madrugada, pra saber se eu estava respirando porque ele sonhara algo ruim comigo, a voz forte e acolhedora sugerindo uma comidinha especial quando eu, ou meus irmãos, estávamos doentes, da preocupação até quando os filhos nos tornamos adultos: “Já comeu?”, “Procure fumar menos…”, “Quer uma comidinha especial amanhã?”, os passeios pela feira…cheiro de peixe…provando farinha…parando para apreciar uma árvore…tanta saudade.

Papai não me faz falta, nunca fez. Não gostava dele, contudo o amava. Estar perto dele na maior parte do tempo era demasiado cansativo:  ter de estar alerta, atuando. Sobretudo a partir da adolescência, quando entendi que jamais seria o filho primogênito macho e viril que ele acreditava que eu fosse.

Não, ele me faz falta hoje, bem como nunca me fez antes, pois era melhor quando não o tinha por perto; afinal era quando eu conseguia respirar, ser eu mesmo ainda que silenciosamente. Junto dele sentia-me perscrutado o tempo todo. Não me faz falta, mas sinto saudade do amor dele, por quem ele pensava que eu era. Das tardes de domingo com céu de baunilha. Dos cuidados de pai, dos conselhos tão certos e eficientes, da gargalhada, dos comentários sarcásticos e engraçados.

Fazem-me falta as conversas que não tivemos. O choro no colo dele que nunca aconteceu em virtude de um amor perdido, saudade de tudo o que não vivemos tanto por receio meu, quanto por incompreensão dele… mas, sobretudo, saudade do amor dele, absoluto, sim. Saudade de não ter tido a ideia de – junto com ele – escolher um nome para esse momento do fim de tarde, tão nosso, em que ouvíamos músicas apaixonadas, envolvidos pela magia do tom amarelado do sépia.

A falta que ele nunca me fez, não suplanta a saudade que me afoga.

Autor: marcelobiz

Bem humorado. Um tanto frustrado; comedor de pimenta; onanista incorrigível. Ecletíssimo acima de tudo.

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